A TV ainda chiava, ele procurou o controle
pela sala, nada. Procurou apenas com os olhos, é claro. Apesar do cansaço que
começava a tomar conta do corpo ele se sentia feliz, sua inimiga jazia,
esperava apenas pelo golpe de misericórdia. Mas onde estaria o maldito
controle? Ah! Claro, como fora burro, provavelmente estava no quarto junto com
todas aquelas outras coisas.
A parte mais difícil fora criar coragem,
enfrentá-la como homem, de frente. Não compreendia bem porque, mas havia ligado
a TV assim que chegou em casa. O maravilhoso e revolucionário Grill Expert era
anunciado. Apenas mudou de canal, outro produto era vendido, e com uma tática
de venda ainda mais deprimente, como ele odiava o sensacionalismo:
-Irmão, aceite Jesus. Ligue para nossa Central
do Descarrego.
A que ponto a humanidade chegara, pessoas
procuravam amenizar seus problemas de solidão de todo o modo, deprimente.
Lembrou-se de Marina. A briga ainda estava em sua cabeça, como ela pôde ter
dito que ele não lhe dava atenção. As mulheres são mesmo muitíssimo injustas.
Era muito tarde pra ligar pra ela, a bebedeira no bar tomara grande parte de
sua noite. Estaria bêbado?
Voltou à sala, nada havia para aplacar sua
ebriedade na cozinha, na realidade, nada havia na cozinha. “Nota mental: fazer
compras”, fazer compras não era muito divertido, o lembrava da pobreza humana,
a de espírito, ele preferia passar outra noite no bar. Na TV uma mulher
agradecia uma cura milagrosa e chorava nas vestes de um pastor, ou padre ou quem
quer que fosse, aquilo não lhe interessava mesmo. A TV chiou rapidamente enquanto
uma nova imagem se formava: a seleção brasileira. Aquilo era um programa menos
ruim a essa hora da noite, apesar de ser mais um dos muitos comercias que
usavam daquele trecho de jogo. O comercial das incríveis lâminas triplas o
lembrou que precisava mesmo se barbear. Imaginou como estaria. Imaginou com
quem Marina estaria.
O espelho do banheiro ainda estava quebrado,
nem se lembrava há quanto tempo. No quarto encontrou o pequeno espelho do
guarda-roupa, virou a foto de Marina pra parede, ela não poderia vê-lo naquele
estado. Sim, estava bêbado.
Mais uma vez na sala,
começou a se cansar daquela madrugada. Que dia era mesmo? Não que importasse,
não teria um emprego pra ir pela manhã. Sua cabeça latejou, perdera o emprego.
Então era esse o motivo da bebedeira, e chegou a pensar que fora por ela. Ora,
nunca que uma mulher o deixaria naquele estado, zapeou a TV, apenas uns poucos
canais. Decerto que a TV a cabo tinha sido cortada, agora tinha motivos pra se
irritar. Que tipo de monstro corta a TV a cabo de um recém-desempregado? Muitas
perguntas existenciais de alta importância pairavam sobre ele agora. Com
certeza teria de ver a luta na casa de Marcos.
Não encontrou o telefone
no quarto, estava na cozinha. Maldito telefone sem fio. Não importava a hora,
ligaria pra Marina e ela ouviria umas verdades. Como se atrevera a deixá-lo no
bar e cortar a TV. As coisas pareciam confusas, só tinha certeza da raiva que
sentia por ela. Era mesmo raiva? Algumas vezes ela já confundira raiva com
saudades. A loura do quinto andar dera mole pra ele no elevador, mas isso fora
pela manhã, quando era um assalariado respeitável, e não um bêbado vadio.
Voltou à TV novamente.
Nada lhe interessava, pensou em dormir, mas já andara pelo apartamento todo
demais para uma bebedeira só, mesmo assim foi até o quarto, na exata hora em
que Fred Astaire começava seu solo no filme da madrugada. Até que dançava bem o
tal do Astaire. Voltou a se irritar, agora se lembrava perfeitamente de tudo.
Marina o deixara porque tinha ido dançar com a loura do quinto andar enquanto
ele fora ver TV a cabo no bar. Aquilo fazia algum estranho sentido pra ele, seu
estado alcoólico parecia fazer com que tudo se encaixasse, afinal, o que é o
amor? Fosse o que fosse, estava irritado, puxou o fio da antena detrás da TV.
Agora ela chiava, e ele
não encontrava o controle. Malditos todos os controles do mundo. Saiu do
apartamento batendo a porta. 205 era o número da porta. Era esse mesmo o número
de seu apartamento? Não importava mais. Imaginou que fosse. Somente um bêbado
como ele deixaria a porta encostada. Não importava mais. Lembrou-se da foto de
Marina, e quase pôde jurar que se esquecia do rosto dela. Não importava mais. Saiu
do prédio. Rodou por mais uns 10 minutos antes de encontrar um bar aberto.
Pediu um uísque. Aquilo sim era vida. Nada importava mais.