Jun 30, 2015

Um conto de saudade

Nunca soube ou nunca quis guardar rancores, minha raiva sempre foi de passar rápido. Quando era criança e ficava de mal pra sempre, a birra só durava algumas horas, e logo o colega voltava a ser colega. Apesar de a tristeza ao olhar pro passado ser impossível de evitar vez ou outra,  o rancor nunca toma conta. E por isso a saudade é a melhor lente para lembrar que passou.
    Dizem que saudade é uma palavra que só existe na língua portuguesa, que não tem tradução possível em nenhum outro lugar fora do nosso mundo lusófono. Não sei se é verdade. Não sei também qual a definição de saudade de acordo com o dicionário, mas não confio em dicionários pra definir sentimentos. Porque saudade um sentimento. E é preciso tomar muito cuidado pra não confundir saudade com falta, que faz doer e querer de volta. Ou com nostalgia, que é uma tristeza por algo que se perdeu no passado. A saudade é, acima de tudo, a exaltação da memória, a valorização da lembrança, a compreensão da importância da parte para a formação do todo. E a saudade mais bonita é a saudade do que nunca foi.



Um conto de saudade

         Acordei outro dia mesmo com saudade daquela vez que dormimos só nós dois numa praia distante de tudo. Acordamos antes do sol, ainda entrelaçados. Você me olhou da forma mais linda que já me lembro de ter sido olhado, e me deu um beijo leve, antes de cair de novo no sono. Que saudade daquele beijo. Tive saudades da tarde em que você fez sua primeira tatuagem, e apertou minha mão tão forte que doeu. Você e seu medo de agulhas. Saímos de lá com uma coisa a mais sobre você pra eu amar: “Truth, beauty, love & freedom”.
Deu saudade também do jantar que eu te fiz quando você foi finalmente promovida. Seu prato favorito, e um vinho que algum amigo jurou que ia bem com carne. Saudades de todas as vezes que você levantou da cama usando só uma camiseta minha, de alguma banda antiga (isso a gente sabe que aconteceu, mas tenho saudades de todas outras vezes que poderia ter acontecido). Que saudade me deu do dia em que todas as suas incertezas sumiram, e você finalmente me disse sim. Saudade da nossa mudança praquele primeiro apartamente alugado, e de como você disfarçou as manchas na pintura da sala com seus quadros de filmes em preto e branco.      
Tive saudades de você tão linda, no seu vestido branco (com detalhes pretos) indo me encontrar no altar, você tentava não borrar a maquiagem enquanto eu tentava enxergar por trás dos olhos marejados. Terminamos aquele dia rindo, cansados demais pra fazer qualquer coisa além de dormir. Que saudade de quando você finalmente me convenceu que a Escócia seria um lugar perfeito pra lua-de-mel. Choveu o tempo quase todo. Foi a melhor viagem da minha vida. Saudades do seu desejo de comer chocolate com purê de batata, que eu pacientemente atendia. Me tornei um expert em purê graças a você. Saudades de deitar do seu lado e discutir por horas qual seria o nome dele, claro que no final você ganhou, você sempre ganhava.
Você não tem ideia, menina, da saudade que eu senti da noite em que corri com você pro hospital, e vi pela primeira vez aquele ser tão pequeno, e que nós iríamos amar tanto.  Acordei outro dia mesmo, com todas essas saudades de uma vez só. Saudade de tudo o que não foi. Saudade da vida que não tivemos.