Eu sempre acho que vou morrer. Acho que é pra me não decepcionar quando acertar um dia desses. A solidão em grupo sempre combinou com carnaval pra mim. Escrevi essa crônica na minha cabeça, torcendo pra não esquecer dos detalhes, enquanto cantarolava um samba no engarrafamento da Pres Vargas.
O carro já estava longe quando ouviu os tiros. Na hora não
soube que eram tiros. Ouviu apenas os barulhos. Imaginou que fossem tiros. Já estava em pé naquele bendito ponto de
ônibus por 40 minutos. Esteve em pé. Agora caía. E só ficara tanto tempo
esperando o ônibus por culpa dela. A baldeação, que era sua opção à esperar o
ônibus tão demorado, significava mais risco de esbarrar com ela. Os tiros eram
culpa dela. Típico.
Enquanto caía não pensou em nada além da queda. E caiu. Nesse
momento percebeu que uma pequena multidão de curiosos se aproximava. Tentou
falar que estava bem, já soferera dores maiores. As palavras não encontravam
forma de saída. Riu da situação. Típico.
Véspera de carnaval. Trabalhara até o turno da noite. Já nem
pensava mais nela. Já nem pensava na festa. Já nem pensava. Agora a dor começava. Não sabia qual dor. Mas
doía. Os curiosos iam se juntando. Ele só tentava compreender. O carro. Os
tiros. Sempre achara que se morrese nesse lugar o responsável seria algum motorista
de ônibus errando a velocidade na curva. Se enganara. Típico.
Passou outro carro. Já deviam ter passado outros. Mas não
reparou. Reparou nesse. Passou tocando um samba antigo. Começou a gargalhar,
apenas em sua propria cabeça, já não tinha força para mover sua face. O carro
se foi. Uma lágrima brotou de seu olho esquerdo e se desfacelou junto ao
cimento da calçada. Ela sempre odiara samba. Riu mais da ironia. Sua boca se
moveu e se abriu num leve sorriso, enquanto a música se repetia continuamente
em sua cabeça, até se desfazer contra o nada. Como uma lágrima na calçada. E
se foi, sorrindo, numa sexta-feira de carnaval. Ouvindo seu samba favorito.